"You", a romantização do stalker e relacionamentos abusivos

Alerta de Spoiler: o texto a seguir contém detalhes da série You, exibida pela Netflix.
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Na última semana, a Netflix estreou a série "You", originalmente exibida pelo canal Lifetime nos EUA e estrelada por Penn Badgley e Elizabeth Lail, que interpretam Jon e Beck, respectivamente (e baseada no livro homônimo de Caroline Kepnes). Ambientada em Nova York, a série tem uma vibe cult e descolada, porém um tanto sombria, antecipando o desenvolvimento geral da trama.

Jon trabalha em uma livraria e conhece a Beck quando ela entra em sua loja em busca de um livro. Mais do que se interessar por ela ou achá-la bonita, Jon desenvolve uma verdadeira obsessão pela moça, interpretando coisas aleatórias como claros sinais de que ela queria ser notada e de que ela estava interessada nele (por exemplo, as pulseiras eram um sinal de que ela queria atenção e pagar pelo livro com cartão em vez de dinheiro significava que ela queria que ele soubesse o nome dela). Ele então começa uma busca pelas redes sociais dela (por serem todas públicas, eram outro sinal de que ela queria ser notada) e descobre inúmeros detalhes sobre sua vida e até o lugar onde ela morava. Quem narra a saga obsessiva é o próprio Jon, mas em sua mente, ele está longe de ser um "stalker", mas sim um cara que está preocupado com a Beck, já que para ele, ela tem um comportamento autodestrutivo e ele é o único cara que não só pode salvá-la, mas também é o único capaz de fazê-la feliz. Ao contrário do que possa parecer, à primeira vista, Jon não é um esquisitão. Ele é descolado, trabalha em uma livraria, não é feio, é progressista (ele até pensa que é o único feminista que ele conhece), denuncia o racismo no comportamento de uma das amigas da Beck. Em suma, ele não é o stalker padrão. Ele é o que chamaríamos de esquerdomacho: tem comportamentos progressistas mas é o misógino de sempre.
Jon, como todo abusador, acha que é o único capaz de fazer a Beck feliz e que é seu trabalho afastá-las de todas as más influências e que a vida dela deve girar em torno dele. Mas ele não se parece com um abusador. Como ele mesmo repete, ele é o cara legal e acima de quaisquer suspeitas. Seu personagem contrasta com o personagem do namorado de sua vizinha: o abusador padrão, agressivo, viciado em jogo e bebidas e que bate na namorada. Jon faz de tudo para afastar o filho da vizinha do agressor e até julga a vizinha por não se afastar do homem que a maltrata (ao que a vizinha responde que não podia se afastar dele por conta das ameaças, e que ninguém escreve histórias sobre mulheres como ela). Ironicamente, Jon não permite que Beck se afaste dele.
O stalker é normalmente romantizado em filmes e séries. A perseguição é sempre vista como uma prova de amor do homem pela mocinha. Ela diz não, ele insiste até que ela ceda. É claro que nos filmes, não vemos o lado bizarro. Os caras são sempre interpretados por atores bonitos que desempenham papeis românticos. Eles são os únicos capazes de fazer as mocinhas felizes e esperam enquanto elas se enganam com homens que claramente não servem para elas. Tanto em You quanto nos filmes e séries, as mulheres não são capazes de decidir seus próprios destinos. Elas são ingênuas e não sabem distinguir entre aqueles que querem seu bem e aqueles que não servem para elas. Elas sofrem porque são incapazes, burras até. Precisam que um homem cuide delas para que elas não se machuquem. O "não" das mulheres nunca é levado a sério. Faz parte do jogo, estão se fazendo de difíceis. You ironiza esse comportamento dos homens nos filmes. Em determinados momentos, o protagonista pensa: "se isso fosse um filme...", demonstrando o quão comum aquelas situações totalmente perturbadoras da série eram em produções "românticas". Ainda que Beck estivesse rodeada de pessoas tóxicas (na visão do protagonista), aquela era a vida dela, como ela mesma diz. Não era trabalho do Jon decidir quem deveria estar ou não na vida dela.
Outra figura é Candace, a ex do Jon, sobre a qual não sabemos muito, apenas que ela terminou com ele porque não sabia valorizá-lo. Parece muito com a narrativa da ex louca. Candace desaparece depois do término e levanta suspeitas em Beck de que o "desaparecimento" dela não foi voluntário, mas sim forçado por Jon. 
Beck tem sua vida completamente controlada por Jon: qualquer sinal de desinteresse dela é motivo para ciúmes. Seus pensamentos devem ser focados apenas nele. De forma extema, ele elimina (fisicamente) qualquer um que ouse ficar entre eles. Um relacionamento que parecia completamente saudável para quem estava fora, mas totalmente abusivo para Beck, que acaba morta pelas mãos do "cara legal e acima de quaisquer suspeitas". No fim, vemos Jon repetindo o padrão com outra moça que entra na livraria (e que na série, se revela ser a Candace, mas no livro, aparentemente trata-se de uma nova moça).

Esses comportamentos abusivos, se repetidos à exaustão, tornam-se normais no nosso imaginário. Um perseguidor é um apaixonado. Mulheres não têm capacidade de discerinir o que é bom ou ruim para si próprias. O amor machuca. Dominação é uma forma de demonstrar amor. Não é à toa que muitas mulheres têm dificuldade para identificar um relacionamento abusivo. Atitudes abusivas são normalizadas e romantizadas. Provas de amor. E mesmo quando identificam e tentam sair do ciclo de abuso, não conseguem. Devem dar mais uma chance, relacionamentos são difíceis, o papel da mulher é o de mudar o homem, tem que lutar pelo relacionamento, as coisas são assim mesmo. 
You não tem nada de romântica. É um retrato dos relacionamentos abusivos, quer eles se apresentem na forma tradicional, ou disfarçados por um suposto romantismo. É um alerta para não cairmos na ladainha do "bom-mocismo".

(Alguns chamam Jon de psicopata. Eu não acho. Isso é tirar a responsabilidade dele sobre suas ações. A porcentagem de psicopatas no mundo é bem baixa. Mas a de misóginos é bem alta. E Jon é um abusador misógino.)

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